sábado, 2 de janeiro de 2016

O primeiro Monge João Maria (1843-1852)

Assim caminhou João Maria

Por: Alexandre Karsburg

Ele escolheu um continente inteiro para viver. Percorreu os quatro cantos das Américas, ora de barco, ora a cavalo, mas principalmente a pé. De 1838 a 1869, atravessou mares, desertos, florestas e montanhas, improvisando residência em grutas e cavernas. Sua missão: salvar almas pela pregação do Evangelho. Essa incrível peregrinação, com dimensões praticamente incomparáveis, estaria fadada ao esquecimento se não tivesse originado, no Brasil, uma tradição religiosa popular que resiste ao tempo e ao personagem que a inaugurou.
Giovanni de Agostini nasceu em 1801 na comuna de Sizzano, região do Piemonte italiano. Após a morte da mãe, em 1819, foi para Roma em peregrinação, seguindo depois para a França e a Espanha, onde tentou se tornar monge, mas não conseguiu adequar-se à reclusão dos mosteiros. Em crise espiritual, cruzou o oceano para trabalhar como mensageiro religioso na América. Sua odisseia no Novo Mundo começou em junho de 1838, no desembarque em Caracas, na Venezuela.
No Brasil ele viveu de 1843 a 1852. Sempre que chegava às grandes cidades – como Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Desterro (atual Florianópolis) e Porto Alegre –, procurava os bispos e presidentes de província em busca de autorização para pregar o Evangelho. Com essa habilitação oficial, partia então para o interior, onde conciliava vida solitária e prática missionária.
Parecia-se fisicamente com seus conterrâneos capuchinhos pelas longas barbas que os deixavam com a aparência dos profetas bíblicos. Embora leigo, Agostini vestia hábito religioso e calçava sandálias rústicas, carregando objetos como Bíblia, medalhas de Nossa Senhora e cajado. Seus sermões também eram comparáveis aos dos capuchinhos da época: em linguagem severa e apocalíptica, gestos teatralizados, falavam do fim do mundo, das penas do inferno e das possibilidades para a salvação da alma, condenando o luxo e a avareza. Em vários locais do Brasil, os capuchinhos e Agostini criaram cruzeiros ou vias-sacras para que os fiéis em procissão se penitenciassem e diminuíssem o débito com Deus.
Era um monge de estatura meã, entroncado; os cabelos crescidos e encanecidos e a barba cerrada e branca, trazia-as em desalinho; na face enegrecida e tostada pelo sol, os olhos azuis tristes e fundos tinham fulguração estranha de místico: um gorro felpudo na cabeça, umas calças curtas que deixavam à mostra os cordões da ceroula e um paletó curto e riscado, de algodão, constituíam sua modesta, mas limpa, indumentária. Completando-a, umas alpercatas e um cinto de couro cru, fabricados por ele mesmo. Ao pescoço trazia um colar de “lágrimas de Nossa Senhora”, a tiracolo uma guampa com água, às costas um saco com alguma roupa, uma caneca, a cuia e bomba do chimarrão e uma lata que servia à guisa de marmita. Carregava também uma caixinha, que à maneira de pequeno oratório, encerrava uma imagem de Nossa Senhora da Abadia. [...] aparentava, na época, ter uns 50 ou 60 anos de idade.
Agostini demonstrava habilidades manuais: fabricava rosários e crucifixos de madeira, que trocava por alimentos e dinheiro para prosseguir sua peregrinação. Aprendeu a combinar ervas, raízes e folhas com a água de certas fontes para uso medicinal. Receitava chás e preparava unguentos para curar enfermos com problemas de pele. O povo o considerava um santo capaz de fazer milagres, venerando-o e seguindo seus passos. Quando esteve no interior do Rio Grande do Sul, próximo ao atual município de Santa Maria, entre 1846 e 1848, as notícias de suas curas ultrapassaram as fronteiras, atraindo uma multidão de doentes e curiosos de países vizinhos, como Uruguai, Argentina e Paraguai.
Os jornais do período afirmaram que um monge estrangeiro havia descoberto “águas santas” que curavam tudo e todos. Segundo as reportagens, paralisias, doenças de pele, fraturas de ossos e outras enfermidades eram tratadas com o uso das águas. Dois médicos foram até o local e constataram que as águas eram apenas potáveis, concluindo que as curas eram efeito da fé “ingênua” do povo. As autoridades do Império investigaram o caso, mas optaram pela cautela. Havia dezenas de missionários circulando pelo extenso território brasileiro. Especialmente durante o Segundo Reinado (1840-1889), capuchinhos italianos fizeram intensos trabalhos de evangelização pelos sertões, com o apoio do imperador D. Pedro II e de ministros e presidentes de províncias – que inclusive solicitavam a presença desse tipo de religioso. Esperava-se que os missionários catequizassem e “civilizassem” os índios e que ajudassem a apaziguar conflitos e rivalidades políticas.
O monge João Maria em 1861: aparência de profeta bíblico.
O monge João Maria em 1861: aparência de profeta bíblico.
João Maria de Agostini serviu de inspiração para vários homens que se lançaram à vida andeja nas décadas seguintes. É considerado o primeiro da série dos três “monges” João Maria que, desde a metade do século XIX, peregrinaram pelo sul do Brasil. [Ver “João Maria: muitos homens em um só santo”, página 22]
Sua formação cultural o destacava dos demais. Segundo testemunhas, tinha bom conhecimento do Evangelho, era versado em Teologia e falava bem o latim e o francês. O padre Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva, deputado provincial de Santa Catarina, no encontro que teve com Agostini na Ilha do Arvoredo – em fevereiro de 1849 –, considerou-o um sujeito “digno de admiração” por adotar vida solitária tal como os santos dos primeiros tempos do cristianismo.
Depoimentos como esse devem ter chegado ao imperador, a ponto de convencê-lo a receber em audiência o “famoso monge das Águas Santas”, em 1849. A julgar pelas memórias de Agostini, o monarca simpatizou com ele e chegou a oferecer-lhe privilégios – o que não convém a um penitente: “O imperador Pedro II concedeu-me a sua amizade, dando-me obséquios e favores que ele não daria para qualquer pessoa. Estas honras, contudo, não eram úteis para alguém que procurava uma vida de solidão e sofrimento; após isso, deixei a capital brasileira para nunca mais retornar”. De todo modo, contar com a augusta amizade de D. Pedro II livrava Agostini de punições e constrangimentos. Isso explica o fato de ter sido inocentado pelo ministro da Justiça na época, Eusébio de Queirós, das suspeitas de charlatanismo, exercício ilegal da medicina, falsas promessas de cura e impostura religiosa – acusações lançadas pelo governo do Rio Grande do Sul e por médicos da Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro.
Em 1852, atravessou a fronteira do Paraguai e estabeleceu-se no Monte Palma. Hoje conhecido como “El Cerro del Monje” (na província argentina de Misiones), naquela época era um morro isolado em meio às arruinadas reduções jesuíticas. No ano seguinte, foi visto em Buenos Aires, e dali partiu para sua jornada pan-americana. Galgou a Cordilheira dos Andes para chegar ao Chile, onde permaneceu de 1854 a 1856, depois passou por Bolívia (1857), Peru (1858), México (1859), Cuba (1860) e até Canadá (1861). Em vários locais sua estada não foi tranquila, pois atraía grande número de seguidores e causava a desconfiança das autoridades. Em tempo de construção dos Estados nacionais e consolidação das fronteiras políticas, a presença de um religioso estrangeiro de intenções desconhecidas preocupava parte dos governos, ainda mais se tivesse influência sobre o povo.
O trajeto de Agostini da Europa à América do Norte, passando pelas Américas do Sul e Central
O trajeto de Agostini da Europa à América do Norte, passando pelas Américas do Sul e Central
O peregrino entrou no país que seria sua última morada no final de 1861, tomando o caminho do oeste dos Estados Unidos. Percorreu quase 1.000 quilômetros a pé, morando em montanhas, até o Novo México. Em 1867, dirigiu-se a uma gruta perto da vila de Las Cruces. Alertado por moradores de que era perigoso viver sozinho por causa da presença de índios selvagens, o idoso eremita deu a seguinte resposta: “Toda sexta-feira acenderei uma fogueira para avisar que continuo vivo e orando por vocês”. E assim fez durante dois anos, de quando em quando descendo ao povoado para catequizar crianças, pregar e tratar enfermos. Em abril de 1869, uma sexta-feira, a fogueira no alto do cerro não se acendeu. Moradores foram procurá-lo e encontraram-no estendido, de bruços, e segurando firmemente seu rosário. Havia sido assassinado, em crime jamais solucionado.
Junto ao corpo do “solitário” foram encontrados diversos papéis, como passaportes e cartas de recomendação indicando os lugares e países por onde ele havia passado. Um conjunto de folhas avulsas registrava suas memórias.
Entre os objetos havia também uma fotografia sua, tirada em 1867 na cidade de Santa Fé. Lá estão o manto, o hábito com capuz, a Bíblia embaixo do braço esquerdo. Sua aparência física guarda semelhança com a descrição do “Frei João Maria d’Agostinho” presente no Livro de Registros de Estrangeiros da cidade de Sorocaba, feita em 24 de dezembro de 1844. Em especial, um sinal particular: “aleijado de três dedos da mão esquerda”.
Se entre os devotos no sul do Brasil João Maria segue encantado no alto de algum morro, aguardando o momento certo para retornar, o corpo do italiano que deu origem ao personagem descansa em paz no cemitério da pequena Mesilla, sul do Novo México, nos Estados Unidos, longe da veneração e do tumulto. Um prêmio tardio para quem sempre perseguiu a perfeita solidão.
Alexandre de Oliveira Karsburgé autor da tese “O Eremita do Novo Mundo: a trajetória de um peregrino italiano na América do século XIX (1838-1869)” (UFRJ, 2012).

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